Freud e a filosofia

Freud não era um filósofo e a psicanálise não é filosofia.

Para investigar as razões subjacentes a essa afirmação, devemos começar com Freud. O autor tampouco pretendeu com a psicanálise formular algo da ordem do trabalho filosófico. Além disso, ele manifestava certa aversão ao discurso filosófico em alguns dos textos que compõem sua obra. No entanto, é inegável que a filosofia exerceu influência de longa data sobre o sistema e a obra de Freud.

Desde algumas traduções de filósofos como J. S. Mill, realizadas durante sua juventude — que trouxeram influências do associacionismo nominalista na noção de representação — até sua leitura de A. Schopenhauer na velhice — onde se observam similaridades entre a metafísica da Vontade e a teoria pulsional — as influências dos precursores filosóficos são evidentes.

Com efeito, em um ensaio tardio sobre a visão de mundo [Über eine Weltanschauung] em 1932, nas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise, opôs a psicanálise à filosofia, afirmando que a primeira não era absolutamente uma Weltanschauung como pretendia ser a segunda. Isso porque Freud esforçava-se para situar a psicanálise no campo das ciências, segundo os procedimentos do discurso científico e voltada a objetos de pesquisa circunscritos. Assim, contrastaria com a filosofia, que segundo a compreensão de Freud, pretenderia captar a totalidade do ser e da realidade, apegando-se à ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do universo sem falhas e coerente (concepção discutível no discurso filosófico, mas que marca a oposição radical no pensamento freudiano entre os discursos da ciência e da filosofia).

Cabe uma breve digressão acerca do que Freud afirma sobre as Weltanschauungen. O conceito alemão, de difícil tradução e cujas tentativas não alcançam o completo significado, é explicado por Freud como o seguinte:

(…) uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo (FREUD, 1932/1996, p. 155).

Situa-se, portanto, entre os desejos ideais dos seres humanos, assumindo uma verdade que é da ordem da ilusão. Ao distinguir as Weltanschauungen que se opõem à ciência — a saber, religião, arte e filosofia — , Freud (1932) postula que a arte é sempre inócua e benéfica, não procurando ser nada mais do que uma ilusão.

No que diz respeito à religião, esta conjuga ensino, consolo e exigências, fornecendo uma explicação sobre a origem e a existência do universo (satisfazendo a sede de conhecimento do homem), assegurando a proteção e felicidade, e dirigindo pensamentos e ações conforme seus preceitos, sendo as garantias a felicidade condicionadas à aderência à moral religiosa. Assim, nota-se o modo como Por sua vez, a filosofia se comporta como uma ciência no que diz respeito aos métodos, mas abraça a ilusão de apresentar um quadro abrangente do universo, livre de falhas e plenamente coerente. Tratando de uma Weltanschauung filosófica, menciona que os diversos sistemas filosóficos aventuram-se a traçar um quadro do universo tal qual se reflete na mente dos pensadores. os asseguramentos de consolo e rígidas normas éticas religiosas se combinam em uma cosmogonia cuja origem está no desamparo infantil, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência sustenta-se na idade madura a partir dos desejos e necessidades da infância.

Por sua vez, a filosofia se comporta como uma ciência no que diz respeito aos métodos, mas abraça a ilusão de apresentar um quadro abrangente do universo, livre de falhas e plenamente coerente. Tratando de uma Weltanschauung filosófica, menciona que os diversos sistemas filosóficos aventuram-se a traçar um quadro do universo tal qual se reflete na mente dos pensadores.

Isto posto, a psicanálise, na qualidade de ciência, psicologia profunda, psicologia do inconsciente, é incapaz de constituir uma visão de mundo por si mesma, podendo aceitar uma Weltanschauung científica. Freud (1932) reconhece que a ciência, enquanto concepção de mundo, escapa do conceito supracitado: também supõe uniformidade, mas somente na qualidade de projeto, na medida que se trata do exercício da faculdade crítica, suportando objeções e rejeições. Também difere-se por sua noção de verdade, pela rejeição a qualquer tipo de ilusão e por prezar pela objetividade.

A psicanálise, nesse sentido, é vista como um método, e não uma teoria universal a ser aplicada ou confirmada, e as interferências da subjetividade ou expectativas do analista no contexto da prática clínica aparecem como questão da ética psicanalítica. Freud adverte os perigos de se projetarem aspectos da própria personalidade ou mesmo a suposta universalidade da teoria, oferecendo pressupostos no setting analítico: a Psicanálise se faz no “caso a caso”, tratando-se do compromisso com a realidade.

Além desta oposição entre psicanálise e filosofia (a partir da noção de Weltanschauung), cabe cotejá-la a outros encontros e desencontros entre elas presentes no discurso de Freud.

Em Totem e Tabu, Freud (1913) compara diversas formações culturais e formações sintomáticas. Ele não afirmou a identidade entre as patologias psíquicas — neurose histérica, neurose obsessiva e paranoia — e as formações discursivas — arte, religião e filosofia — , mas apontou-as como suas respectivas distorções: um quase, ou como se.

As neuroses, por um lado, apresentam pontos de concordância notáveis e de longo alcance com as grandes instituições sociais, a arte, a religião e a filosofia. Mas, por outro lado, parecem como se fossem distorções delas. Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranóico é a caricatura de um sistema filosófico (FREUD, 1913/1996, p. 95).

Ou seja, o discurso freudiano enuncia que as modalidades psicopatológicas poderiam ser como as formações culturais. Elas divergem, no entanto, pelo fato das neuroses tratarem-se do esforço para conseguir por meios particulares o que na sociedade se efetua por meio do esforço coletivo (porque são estruturas associais, cujo objetivo é fugir de uma realidade insatisfatória através do fantasma da fantasia). Em contraste, nas formações culturais existe sempre um processo sublimatório, que permite o direcionamento das pulsões sexuais à realização de obras de cultura.

Porém, mesmo com as ponderações críticas, a similaridade estrutural e os mecanismos psíquicos envolvidos na cultura e nas psicopatologias foram expressos de forma eloquente. Existiria um estilo de ser similar entre a exibição sedutora na histeria e na arte como forma de criação, assim como entre as ruminações culposas nas obsessões e nas religiões, e a ordenação lógica impecável, porém fundamentada em premissas falsas, que configura tanto as psicoses quanto os sistemas filosóficos. Assim, o delírio e o discurso filosófico se articulariam de forma similar, pois em ambos as palavras seriam manejadas como se fossem coisas, sem o imperativo do teste de realidade.

Em contrapartida, ao referir-se à criação da Psicanálise, Freud se dirige a filosofia de outra maneira, por exemplo, na correspondência a Fliess no final do século XIX. O pai da psicanálise diz aproximá-la da filosofia e afastá-la da medicina, finalmente realizando seu desejo de ser um filósofo. Desse modo, a fundação da psicanálise como saber está no campo da interlocução com a filosofia, refletindo tensões que se referem ao impulso por razões epistemológicas e a tentativa de delimitar as fronteiras da psicanálise como saber legítimo.

Sobre O interesse científico da Psicanálise, Freud (1913) aborda seu interesse filosófico, afirmando que a filosofia não poderia deixar de considerar integralmente as contribuições psicanalíticas à psicologia. Em especial, resgata que a filosofia já havia tratado do inconsciente, mas sem o devido conhecimento sobre os fenômenos da atividade mental. Por outro lado, a psicanálise também poderia se interessar pela filosofia, sobremaneira no que diz respeito a uma possível psicobiografia dos filósofos a partir do que nos ensina sobre as unidades afetivas, o estudo de suas transformações e produtos finais que surgem das forças instintivas.

Por isso, pode-se aludir que o encontro filosofia e a psicanálise é litoral: como aquilo que coloca um campo inteiro como fazendo fronteira com um outro, mas sem uma relação recíproca. Sua relação se constitui de maneira aporética, com fronteiras talvez móveis e porosas. As intenções epistemológicas da fundação da psicanálise não esgotam suas relações com a filosofia, assim como o esforço para delimitar fronteiras maciças não o fazem. Isso posto, é preciso evocar a recepção daquela a esta, situando a problemática em uma interlocução crítica e latente, inclusive no que diz respeito à história de recepção da psicanálise pela filosofia.

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